Wednesday 9 December 2009

O corpo, o rosto, os espelhos, o resto

Existo. Sou uma estrutura com a vulgar forma humana.
Sei de que peças se compõe essa estrutura, como se movem, quais são as suas funções. Sei usálas, normalmente. Vejo-me. Que me vejo? Vejo os meus pés, as minhas mãos, os braços, as pernas, o lado esquerdo do meu corpo, o lado direito, a frente do meu corpo, a pele, a superfície, o contorno da superfície, o movimento da estrutura-máquina que sou. Sou uma peça única. Que posso comandar.
Donde me comando? Para lá da máquina, onde estou eu exactamente.

Procurei-me no reflexo dos espelhos. Todo o reflexo de mim era ao contrário do que sou. E o rosto? O rosto é um ser vivo independente do corpo. Uma janela donde me vejo. E porque o rosto é um ser vivo, qualquer momento em que o veja reflectido, o seu reflexo pode não ser igual àquele que reflectiu antes, nem ao que reflectirá a seguir. E qualquer pessoa que olhar o meu rosto em qualquer momento, poderá não ver exactamente o mesmo que veria se me olhasse antes ou depois desse momento. Eu mesma, o que vejo de mim no reflexo dos espelhos nem sempre é o mesmo que me imagino. Isso leva-me a pensar que o que de mim julgo e imagino pode ser pura invenção. Eu não sou a realidade que me atribuo nem o que, conforme o momento, a hora, a ocasião, os outros de fora de mim me julgam. De fora de mim me constroem. Eu apenas assisto. Donde exactamente?
Já não sei se existo.

Maria Keil
Imagem Eye, M. C. Escher 1946

Tuesday 8 December 2009

04iii2008

Vingar-me-ei do tormento que é acordar para mais um dia agonizante de tanto pensar em ti, de não te querer em mim.

Pagarás por todas as noites perdidas em meu próprio inferno de lâminas com as quais desesperadamente tento cortar o cordão umbilical que me une ao teu reflexo.

23xi2007

Ao nascer
fui condenada perpetuamente à vida com consciência dela própria.

Friday 4 December 2009

04xii2009

Raiva.
Raiva de cão a roer osso.
De cão tinhoso.
De cão fornicando o poste em desespero de umas gotas de alegria numa vida de abandono.
Raiva de lábios rebentados e dentes rangendo nas noites não dormidas.
Raiva da raiva que me consome de dentro para fora.
Raiva do que me rodeia sem razão de existir.
Porque me apetece odiar o mundo porque me odeio a mim própria.

13iii2008

Não! Não irei procurar de novo os restos de ti (do teu amor).
Não serei mais uma vez só um corpo para atenuar o amargo dos teus dias...

Thursday 19 November 2009

19xi2009

Que não perturbem o meu nevoeiro!
Doêm-me as ideias...
'Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.
Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscências de qualquer outro mundo em que houvéssemos estado - reminiscências cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem se a soubéssemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que deles somos, de uma maneira incompleta - perdida a solidez e nós figuramo-no-la mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se abraçam em visão - tudo isto pesa como uma condenação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anónimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa súbtil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casa inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma - como única realidade do momento - há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.'

Bernardo Soares
in Livro do Desassossego

Saturday 17 October 2009

08ix2006

Lisboa
Onde me perco

Onde me misturo na multidão
E me sinto só
No silêncio ensurdecedor
Do trânsito à hora de ponta
No ritmo da máquina de café
No sabor do açúcar no fundo da chávena...

Encontro-me
E rapidamente esqueço o que sou.
Em pedra esculpida em varandas
Suicido tristezas
E experimento o vazio da solidão.
No moribundo Tejo
Lavo os pés
E descanso o sonho...

22iii2002

Morte, porque demoras tu a chegar?
Porque me deixas viver
Nesta angústia de saber
Que um dia me virás buscar?

Leva-me! Leva-me agora,
Pois a dor já não a aguento.
Aproveita este vento;
Sinto que esta é a Hora...

Toma-me pelos lábios! Invade-me o corpo!
Arranca cada pedaço vivo de mim!
Dá-me o prazer de ter um triste fim!
Não quero que deixes vestígios de meu ser morto.

Monday 12 October 2009

Regresso às histórias simples – 5

Eis-me acordado
Com o pouco que sobejou da juventude nas mãos
Estas fotografias onde cruzei os dias
Sem me deter
E por detrás de cada máscara desperta
A morte de quem partiu e se mantém vivo

A luz secou na orla desértica da cidade
Escrevo para sobreviver
Como quem necessita partilhar um segredo

Este corpo em que me escondi
Gastou-se

Quantas noites permanecerão intactas
No fundo do mar? O rosto ainda jovem
Foi tesouro de seivas que me entonteceu

Pelo corpo condeno-me à vida
De susto em susto à inutilidade da escrita

Mas eis-me acordado
Muito tempo depois de mim
Esperando por alguma fulguração do corpo
Esquecido
À porta do meu próprio inferno

Al Berto
In Medo

Sunday 11 October 2009

Feira de Aberrações



Fallen Angels


Siameses


Madness


Whispers


Chunky Monkey Baby


The mirror


Aquarium

vii2009

Quero o dia limpo
Manhã de terra húmida
E vento fresco na pele
Quero sol de inverno
E ao longe o silêncio de ondas a quebrar
Quero sentir o ranger de uma cadeira de baloiço
E o pensamento vazio

Não me perturbem – quero estar só
Ser só
Enrolar-me na manta de ilusões retalhadas
E adormecer pela primeira vez

Monday 5 October 2009

04x2009

Estou só. Uma vez mais. Cada vez mais.
Desligo-me lentamente do mundo.
E afundo-me em mim.

Escrevê-lo torna tudo mais real, mais longíquo, menos sentido.

Perdi, por vontade própria, mas não racional, quase todo o pouco que tinha.
Também me perdi.
Procuro-me mas não me sinto.
Não sinto em mim nada do que fui. Nem sei se quero ser algo diferente disto.

Da realidade nada me chama.
E então deixo-me estar, insignificante.
Indiferente dos outros e para os outros.

Indiferente de mim?...



Arre!, Tu! tu aí dentro da minha cabeca que teimas em pensar e perturbar-me o sono e cegar-me espetando dedos afiados nos olhos – tu que tentas separar o eu do mim – tu que me olhas do espelho de expressão vazia e me dás vómitos – volta ao vazio de onde vieste! Deixa-me dormir!...

Doêm-me as ideias...

Sunday 4 October 2009

A alma humana é porca como um ânus

A alma humana é porca como um ânus
E a Vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações.
Meu coração desgosta-se de tudo com uma náusea do estômago.
A Távola Redonda foi vendida a peso,
E a biografia do Rei Artur, um galante escreveu-a.
Mas a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas, como um perfil distante.

Está frio.
Ponho sobre os ombros o capote que me lembra um xale —
O xale que minha tia me punha aos ombros na infância.
Mas os ombros da minha infância sumiram-se muito para dentro dos meus ombros.
E o meu coração da infância sumiu-se muito para dentro do meu coração.

Sim, está frio...
Está frio em tudo que sou, está frio...
Minhas próprias ideias têm frio, como gente velha...
E o frio que eu tenho das minhas ideias terem frio é mais frio do que elas.

Engelho o capote à minha volta...
O Universo da gente... a gente... as pessoas todas!...
A multiplicidade da humanidade misturada,
Sim, aquilo a que chamam a vida, como se não houvesse outros e estrelas...

Sim, a vida...
Meus ombros descaem tanto que o capote resvala...
Querem comentário melhor — Puxo-me para cima o capote.

Ah, parte a cara à vida!
Liberta-te com estrondo no sossego de ti!

Álvaro de Campos

in Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

Sunday 16 August 2009

23vii

Sem ti o tempo sabe a deserto

Onde me perco entre a tua memória

E o nascer de mais um dia


Sem ti o poema é vazio

E a tua ausência ecoa como punhaladas

Na tela em que te pinto

Em tons de carne e cinzento

16viii2009

Deixo os dias passarem por mim sem pensar que existem. Como sonhos dos quais sou mero espectador, sem interferir de forma consciente. Não sou feliz mas sinto-me bem vivendo nesta tristeza cinzenta. Existo. É-me indiferente.

E, a consciência deste estado semi-adormecido traz-me um sorriso nos lábios que me aquece no inverno do meu inferno.

Saturday 1 August 2009

01viii2009

Adaptando as palavras do Escritor* – que farei com este blogue?...

Deixei de escrever há algum tempo. Talvez demasiado. Mas questões e sentimentos passados voltam a ter sentido… Revisito então as minhas notas.
Andam soltas, espalhadas um pouco por todo o lado. Livres em papel branco, cadernos, blocos,
em guardanapos, papel sujo, em gatafunhos de lápis,
na caneta mais a jeito,em recibos de compras, em telas escuras,
mas sobretudo presas em mim…

Abomino a ideia de partilhar a única coisa que verdadeiramente me pretence – o meu vazio – mas começo a ter medo de estar sozinha com ele e deixar que o mesmo me consuma… “Enfrento-o” então aqui...
*José Saramago, “Que farei com este livro?”, Editorial Caminho, 1999

vii2007

O que dava eu para poder apagar de mim todo o conhecimento do que sou, resumir-me à minha própria insignificância, destruir toda a capacidade de pensar, racionalizar, e eliminar de vez qualquer tipo de emoções! Daria tudo para que fosse possível cometer um suicídio mental! Para que de mim somente restasse um corpo reactivo a estímulos físicos, um autómato de cara bonita, sorriso calmo e agradável! Que prazer vegetativo sentiria se conseguisse afogar a razão em si própria, no mar negro de pensamentos que se revolta no vazio existente por debaixo da minha máscara impenetrável! Sentir-me-ia verdadeiramente livre se pudesse mergulhar no precipício abissal que encontro em frente de cada vez que fecho os olhos e vejo o meu interior… Um passo só para o sossego da ignorância!

02vii2009