Wednesday 24 February 2010

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Não quero ser quem sou, é evidente;
antes monstro qualquer com ar de gente
do que este tronco de árvore daninha
onde repousam ninhos de fantasmas
e brilham finos dentes de duendes.
Antes ser, no ar frio, nuvem que voa
branca de não ser nada, para leste,
do que esta sombra humana que me deste
sem dimensão nem cor, nem sábia hipnose,
nem o fulgor vulgar dos ectoplasmas.
Na pele esburacada já deitaram
semente microscópicos venenos;
vou-me deixar levar, por mão de verme,
antes que à luz do dia possas ver-me.

António Franco Alexandre
in Duende

24ii2010

Por mim
não há palavras escritas
nem lágrimas salgadas choradas derramadas

Por mim
o sol não brilha nem aquece
e o nevoeiro não se levanta

Por mim
pouco foi feito
e, desse mesmo pouco, não sou merecedor

Não valho nada e não há nada que me valhe...

Não há ferros que me arranquem a tristeza de dentro
não há facas que cortem as ideias o pensamento
não há lâmina que me corte os pulsos e me sangre o tormento!

Sunday 7 February 2010

Sem título e bastante breve

(...)
dizem, que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito interrogar-se acerca da melancolia das mãos
esta memória-lâmina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
que sei eu sobre tempestades do sangue? e da água?
no fundo, s
ó amo o lado escondido das ilhas

amanhe
ço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr
à velocidade da minha solidão

Al Berto

Visita-me enquanto não envelheço

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


Al Berto
in
'Salsugem'