Wednesday 9 December 2009

O corpo, o rosto, os espelhos, o resto

Existo. Sou uma estrutura com a vulgar forma humana.
Sei de que peças se compõe essa estrutura, como se movem, quais são as suas funções. Sei usálas, normalmente. Vejo-me. Que me vejo? Vejo os meus pés, as minhas mãos, os braços, as pernas, o lado esquerdo do meu corpo, o lado direito, a frente do meu corpo, a pele, a superfície, o contorno da superfície, o movimento da estrutura-máquina que sou. Sou uma peça única. Que posso comandar.
Donde me comando? Para lá da máquina, onde estou eu exactamente.

Procurei-me no reflexo dos espelhos. Todo o reflexo de mim era ao contrário do que sou. E o rosto? O rosto é um ser vivo independente do corpo. Uma janela donde me vejo. E porque o rosto é um ser vivo, qualquer momento em que o veja reflectido, o seu reflexo pode não ser igual àquele que reflectiu antes, nem ao que reflectirá a seguir. E qualquer pessoa que olhar o meu rosto em qualquer momento, poderá não ver exactamente o mesmo que veria se me olhasse antes ou depois desse momento. Eu mesma, o que vejo de mim no reflexo dos espelhos nem sempre é o mesmo que me imagino. Isso leva-me a pensar que o que de mim julgo e imagino pode ser pura invenção. Eu não sou a realidade que me atribuo nem o que, conforme o momento, a hora, a ocasião, os outros de fora de mim me julgam. De fora de mim me constroem. Eu apenas assisto. Donde exactamente?
Já não sei se existo.

Maria Keil
Imagem Eye, M. C. Escher 1946

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